Como ler uma obra de não ficção?
Gostaria de demonstrar como interpretar um texto de não ficção, por exemplo A última casa de ópio, de Nick Tosches.
Originalmente uma reportagem publicada na Vanity Fair em setembro do ano 2000 sob o título "Confessions of an opium-seeker", saiu como livro, no Brasil, pela extinta Editora Conrad, em 2006.
Usarei a matéria original, embora nada se perca ou ganhe com isso, pois o original em inglês foi seguido à risca pelo livro em português.
As traduções dos trechos citados, no entanto, são minhas, e foram realizadas com liberalismo, compometidas apenas com a compreensão no contexto deste experimento.
As ferramentas
As ferramentas de interpretação que usarei servem também para composição literária e você pode aprender todas elas em uma oficina de escrita criativa:
- O esquema, com a reviravolta, o desenvolvimento e a resolução da história.
- O enredo, que pode ser de transformação (aventura, amadurecimento, superação pessoal, ou ruína), perseguição (caçada humana, caça ao tesouro, rivalidade, vingança, ou amor) e investigação (um crime a ser desvendado).
- As fichas dos personagens principais (um personagem principal tem um conceito, um objetivo, um obstáculo, e uma descrição) e a listagem dos coadjuvantes (que são superficiais).
- A sequência de cenas, cada cena com uma resposta para "Quem? Onde? Quando? O quê?" e uma função na narrativa.
Essas ferramentas eu as desenvolvi pinçando de manuais e cursos de redação criativa, recordando-me especialmente de Writing for story, de Jon Franklin; 20 master plots and how to build them, de Ronald Tobias; Writing for comics, de Alan Moore; e Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico, de Syd Field.
Esquema
O esquema de A última casa de ópio pode ser descrito como a seguir:
Reviravolta. Nick Tosches quer fumar ópio em uma casa de ópio.
Desenvolvimento:
- Tosches supera dilemas morais, legais e medicinais, decidindo-se a buscar o ópio.
- Não encontra ópio no ocidente.
- Encontra ópio no oriente.
Resolução. Nich Tosches fuma ópio em uma casa de ópio.
Enredo
O enredo de A última casa de ópio é um enredo de perseguição (caça ao tesouro) combinado com alguns elementos de transformação (aventura).
Qual é o tesouro?
O tesouro é o significado do ópio fumado em uma casa de ópio.
O maior risco de qualquer enredo de perseguição está em converter-se em uma ação desmiolada; Tosches evitou isso ao focalizar no significado do ópio fumado em uma casa de ópio; esse foco lhe permitiu entremear a narrativa de ensaios prazerosos em sua erudição.
Como a distinção entre os enredos não é absoluta, a narrativa de Tosches se reveste de características de um enredo de transformação do tipo aventura.
A transformação se revela pela mudança da imagem que o protagonista tem de uma casa de ópio, que passa de uma mistura glamourosa de ópio e concubinas para um lugar desprovido de ornamentos (e concubinas) e dedicado exclusivamente ao ópio.
Dentre os elementos de aventura, destacam-se o exótico, o perigo e a abertura do personagens ao que o acaso lhe traz. Tosches viaja ao oriente e explora o interior do Camboja em busca da última casa de ópio.
Personagens
O livro A última casa de ópio é narrado em primeira pessoa: o autor vivenciou toda a história que ele narra. Tosches é o protagonista.
Mas não há um personagem antagonista, nenhum personagem em especial se opõe ao protagonista; a oposição ao protagonista se espalha no cenário da narrativa, nos percalços da caça ao tesouro, a procura pela casa em que fumar ópio.
Em compensação, a narrativa dispõe de uma corte de coadjuvantes, todos em alguma medida engajados em auxiliar o herói, mas tão esquemáticos, tão superficiais, que não sabemos deles nada além da nacionalidade, da posição social e do sexo.
Podemos fichar o Nick Tosches, protagonista da narrativa, assim:
- Conceito: um escritor tomado pela sede de viver.
- Objetivo: fumar ópio em uma casa de ópio.
- Obstáculo: não existem mais nem ópio nem casas de ópio.
- Descrição: homem maduro, destemido, vivido, decidido, letrado, boa condição social, relações sociais consistentes, hábil comunicador.
Dos personagens coadjuvantes, os mais relevantes são os seguintes:
- Um amigo dono de um dos mais caros restaurantes de Manhattan, Nova York.
- Um amigo de Hong Kong, de mais idade e dignidade do que o Tosches.
- Um conhecido de Hong Kong, bastante sabido das delegacias locais.
- Outro conhecido de Hong Kong, um representante do submundo.
- Um outro amigo, este da Tailândia.
- Conhecidos em Camboja.
- Um homem bem vestido, que por um instante Tosches acredita ter conexões o narcotráfico na Tailândia.
- Um homem apresentado como mestre do ópio.
- Um senhor de idade, apresentado como o senhor de uma casa de ópio.
Cenas
Uma cena é uma passagem que impulsiona a narrativa para a resolução. Nas cenas, aparecem os personagens, suas motivações, e o cenário.
Precisamos identificar as cenas e seus componentes.
Uma cena tem os componentes a seguir:
- Quem está na cena?
- Onde se passa a cena?
- Quando ocorre a cena?
- O que a cena mostra?
- Para que existe a cena, qual sua função da narrativa?
Nos tópicos seguintes, caracterizo reponto essas perguntas para cada cena que identifiquei em A última casa de ópio.
Cena 1
Nick Tosches e coadjuvantes frequentam um badalado restaurante italianizado em Manhattan, Nova York, em finais dos anos 90. Tosches então se dá conta da esnobismo consumista do lugar e declara sua motivação, que é um elemento de seu conceito como protagonista. Em contraponto a todos aqueles consumidores esnobes, Tosches afirma: "Eu decidi viver".
A cena serve para apresentar o protagonista e o seu conceito: um escritor tomado pela sede de viver.
Cena 2
Essa é uma cena que contém um ensaio permeado de leves elementos narrativos. Um ensaio é um texto de convencimento, grosso modo uma dissertação.
Essa cena, por ser dissertativa, não tem resposta para as perguntas "Quem, Onde, O quê", mas responde a pergunta "O que acontece" com argumentos ao invés de personagens e ação. Também responde "Qual a função da cena na narrativa".
Tosches comenta a história do ópio e sua tradição literária, religiosa, mística e medicinal. Com isso ele convence o leitor de que sua procura por ópio em uma casa de ópio corresponde ao remédio contra o esnobismo consumista.
No final Tosches constata a inexistência de ópio, muito menos casas de ópio, no ocidente (Estados Unidos e Europa).
A cena serve para apresentar o objetivo e o obstáculo do protagonista:
- Objetivo: fumar ópio em uma casa de ópio.
- Obstáculo: não há ópio nem casas de ópio por perto.
Cena 3
Nick Tosches interage com coadjuvantes variados enquanto perambula por Hong Kong, Tailândia e Camboja à procura de ópio em uma casa de ópio.
Em lugar de ópio ou casas de ópio, Tosches encontra a podridão de perversões e vícios à venda: heroína, prostituição de mulheres famélicas, prostituição infantil, comércio de seres humanos. Encontra também o parque temático da Disney, os frangos fritos da rede KFC, os resorts luxuosos, mas nada de ópio.
A cena serve para agravar o obstáculo: parece que Tosches não encontrará ópio ou casa de ópio nem mesmo no oriente.
Cena 4
Nick Tosches consegue ajuda de um coadjuvante para visitar o interior do Camboja, onde finalmente encontra um fumante de ópio. Eles fumam ópio.
Tosches faz uma digressão, disserta sobre como o ópio revela a verdade do silêncio.
A verdade do silêncio, explicada por Tosches em um ensaio de fina erudição, é o significado do ópio.
Se a busca por esse significado impediu que a narrativa se descarrilhasse em uma aventura turística por terras exóticas, o encontro dessa verdade tende a saciar o leitor, que a essa altura dificilmente toleraria que Tosches apenas ficasse doidão de ópio. Após tanto esforço, tantas palavras e páginas, a verdade do silêncio se mostra um tesouro satisfatório.
Mas a caçada ainda está incompleta: Tosches encontrou o ópio, encontrou seu significado, agora falta encontrar a casa de ópio.
A cena serve para encaminhar a resolução: esta cena e a próxima equipam Tosches com as habilidades para fumar e apreciar o ópio em uma casa de ópio. Na cena presente, Tosches aprende a puxar a fumaça do ópio para os pulmões, ou seja, a fumar ópio, e entende a verdade do silêncio, ou seja, aprende o significado de fumar ópio.
Cena 5
Nick Tosches está de volta a um hotel na capital do Camboja quando um misterioso homem bem vestido o aborda e o conduz ao encontro de um mestre do ópio.
O mestre do ópio explica a Tosches sobre o chandoo, que é o ópio refinado, livre das impurezas, a substância que deve de fato ser fumada.
Claro, os dois fumam ópio.
O mestre do ópio presenteia Tosches com um mapa e um pacote de chá, respectivamente o caminho e a chave de entrada para uma casa de ópio.
A cena serve para encaminhar a resolução: na cena anterior Tosches aprendeu a puxar o ópio para dentro, agora ele descobre o ópio puro, o chandoo, e recebe o mapa e o pacote de chá, respectivamente o endereço e o convite de uma casa de ópio.
Cena 6
Nick Tosches está em algum lugar da Indochina ("Somewhere in Indochina", nas palavras dele). A Indochina é uma península ao leste da Índia e ao sul da China em que ficam Vietnã, Laos, Camboja, Tailância e Myanmar. Ele conversa com motoristas de tuk tuk e segue com um deles até a casa de ópio, em que é recebido por um frequentador, depois pelo próprio senhor da casa de ópio.
O senhor da casa de ópio indica a Tosches uma acomodação na casa, e prepara o ópio. Tosches se apronta para fumar, sentindo-se em casa.
A cena serve para apresentar a resolução da história: o protagonista cumpriu seu objetivo, superou seu obstáculo, e a reviravolta da história foi resolvida, pois Nick Tosches conseguiu fumar ópio em uma casa de ópio.
Concluindo
A unidade entre esquema narrativo, enredo e protagonista é o que explica a força literária de "A última casa de ópio".
O personagem principal e o esquema narrativo se desenvolvem colados:
- Tosches tem sede de viver, o que o obriga a livrar-se do mundo decadente do consumismo esnobe, com todos os seus vícios.
- Tosches decide encontrar a verdade do silêncio em uma casa de ópio, porque somente a verdade pode saciar a sede de viver.
A tensão narrativa gira em torno de Tosches, em um primeiro nível, conseguir ou não fumar ópio em uma casa de ópio, e, em um segundo nível, entre ele encontrar ou não a verdade que sacia a sede de viver.
A resolução mostra-o fumando ópio em uma casa de ópio após uma jornada continental através da decadência que globaliza igualmente heroína, prostituição, parques temáticos, redes de fastfood e resorts de luxo, que formam o cardápio daquele consumismo esnobe que Tosches identificou e repudiu na abertura da narrativa, naquele restaurante italianizado em Manhattan.
A realização do personagem, quando ele supera todos os obstáculos e cumpre o objetivo, e a resolução da história, coincidem, formando um todo orgânico.
A história e Tosches chegam ao ápice juntos em uma casa de ópio, um lugar em que o dinheiro não tem a menor relevância e em que as pessoas fazem o que nasceram para fazer: o senhor da casa de ópio prepara o ópio e os fumantes fumam o ópio. Sem palavras, sem gestos desnecessários, sem artifícios de marketing, o senhor do ópio e o fumante de ópio se engajam na verdade do silêncio.
Sobre Nick Tosches
Nick Tosches (1949-2019) foi um jornalista norte-americano que emergiu da impressa roqueira dos anos 60 como um talentoso biógrafo e romancista.
Suas obras impressionam pela erudição e pelo estilo literário robusto, que contava entre suas influêcias a Bília King James.
Tosches era filho de imigrantes italianos. Decidido a escrever, trocou uma vaga na universidade por uma vaga de jornalista em uma revista especializada em rock e música pop.
Contribuiu para grandes publicações: CREEM, Roling Stone, Vanity Fair e Esquire, enquanto se dedicava a escrever biografias e romances.
Além de The last opium den (no Brasil A última casa de ópio pela extinta Editora Conrad), ele escreveu a elogiada biografia do astro do rock Jerry Lee Lewis, Hellfire, e uma história da música country dos Estados Unidos, Unsung heroes of rock'n'roll: the birth of rock in the wild years before Elvis.
Para maiores detalhes da vida e obra de Nick Tosches, por favor, consulte o obituário publicado pelo The Guardian