Estudo narrativo de "A solidão definitiva", de Rodrigo Gurgel
Um dos maiores críticos literários do país, criador do conceito de "narratofobia", Rodrigo Gurgel publicou o conto A solidão definitiva em 2014 no jornal La Insignia e em 2018 em seu blog pessoal.
O estudo narrativo que aqui apresento refere-se à versão mais recente, do blog pessoal do autor. É desajeitada homenagem minha ao saber do professor Rodrigo Gurgel.
Para aproveitar ao máximo este estudo narrativo, recomendo que antes você conheça o conto de Rodrigo Gurgel e as ferramentas de composição literárias usadas em sua análise, explicadas em outra postagem e na oficina de escrita criativa.
Último aviso: Estão expostos no estudo narrativo que se segue, todos os detalhes e o final da história.
Premissa
Reviravolta. Doença atinge Domingos.
Desenvolvimento:
- Domingos se afasta dos amigos.
- Domingos procura ajuda médica.
- Domingos tenta retomar rotina.
Resolução. Doença aniquila Domingos.
Enredo
O enredo de A solidão definitiva é o enredo de ruína, um tipo de enredo de transformação: o protagonista descende de um ponto positivo (a velhice saudável) a um ponto negativo (a velhice doente) geralmente por obra de um defeito seu, mas, no caso de Domingos, por obra de uma fatalidade da vida.
Nesse enredo, é importante que o protagonista desperte a simpatia do leitor.
O personagem Domingos tende a conquistar a simpatia do leitor, porque, antes da doença, ele era um homem bom que, após anos de trabalho honesto na contabilidade de um banco para o sustento da família (de que conhecemos a esposa dedicada e a filha), desfrutava da aposentadoria com o que mais amava: a literatura. E ele se cuidava, praticava natação, mas a doença retira-lhe as faculdades mentais requisitadas pela poesia.
Também a situação retratada, além de verossímel (podemos de fato cair doentes quando esperávamos desfrutar da vida), pode ser relativamente comum, e volta e meia ouvimos causos de pessoas que padeceram ou padecem de doenças justamente quando esperavam colher os frutos de uma vida de labor. Temos, como leitores, a sensação de que algo semelhante poderia nos acontecer, mesmo que nossa alegria não provenha da declamação de poesias. Quantas pessoas não sonhavam viajar na aposentadoria, então se acidentam e ficam presas a suas camas pelo resto da vida? Essas fatalidades acontecem e é essa identificação nossa com Domingos que aumenta as chances do enredo funcionar.
Personagens
Domingos é o protagonista:
- Conceito: literato aposentado
- Objetivo: desfrutar, na aposentadoria, a vida literária de que o trabalho como contabilista e a vida interiorana lhe privou na juventude
- Obstáculo: ele contraiu uma doença neurológica
- Descrição: homem, classe média, boa educado
Essas características genéricas são detalhadas no texto posteriormente:
- Literato aposentado: "calva aureolada de cabelos brancos", "escritor que havia perdido grande parte da vida preso à contabilidade de um banco"
- Desfrutar, na aposentadoria, a vida literária: "assemelhava algum magnata retornando das férias do litoral"
- Boa educação: "Ele declamava Baudelaire em francês"
- Classe média: "contabilidade de um banco", "deixando a mulher e a filha desesperadas", "partir no automóvel", "escritório repleto de livros", "cadeira de balanço", "janela aberta para o jardim-de-inverno"
A Doença é o antagonista:
- Conceito: uma doença neurológica.
- Objeitvo: impedir que Domingos desfrute da literatura após a aposentadoria.
- Obstáculo: os cuidados de saúde de Domingos.
- Descrição: uma doença neurológica que incapacita Domingos aos poucos, mas depressa.
O Narrador e amigos de Domingos são coadjuvantes neutros, que contemplam a decadência de Domingos, sem atitudes efetivas a respeito (também o que poderiam fazer?). São frequentadores, e alguns proprietários, da livraria em que com eles se reunia Domingos para recitais de poesia. O narrador se mostra carinhoso em sua recordação de Domingos, e observador dos detalhes do amigo.
Cenas
Cenas que levam à reviravolta
As cenas 1, 2 e 3 apresentam o protagonista (Domingos), seus hábitos, as amizades, com dois propósitos:
- Elaborar o equilíbrio inicial, prestes a ser rompido pela reviravolta.
- Estimular o leitor a simpatizar com o protagonista.
A cena 4 apresenta a reviravolta e transita o leitor para o desenvolvimento da história.
Cenas que mostram o desenvolvimento
As cenas 4 e 5 concentram todo o desenvolvimento da história. Num primeiro momento, Domingos se ausenta dos encontros com os amigos. Depois, tenta retomar os encontros, negar a doença, retardar a doença, vencer a doença pela obstinação do hábito.
O contraste revela a decadência do protagonista: o homem que recitava Baudelaire em francês tornara-se um homem incapaz de comunicar os pensamentos mais simples, terminando por ser recolhido pela família como uma criança traquinas.
Cena de resolução
A Cena 6 conclui a história com a ruína completa do protagonista. O narrador faz uma visita à casa de Domingos, finalmente o encontrando "acorrentado ao vazio em que a poesia não pode adentrar."
Novamente, é o contrasta que revela a decadência: de um ser de que emanava a poesia ("Ele declamava Baudelaire em francês"), Domingos arruinara-se por completo convertendo-se em um ser "acorrentado ao vazio em que a poesia não pode adentrar".
Cena 1
Domingos recitando seu poema predileto
§ 1, 2, 3, 4
- Quem? Domingos.
- Onde? Reunião com os amigos em uma livraria.
- Quando? Em algum momento do passado.
- O quê? Domingos recita Baudelaire.
- Como? Domingos recita Baudelaire em francês, pormenorizadamente o poema "À une passante" ("A uma passante"), do livro "Les fleus du mal" ("As flores do mal").
- Por quê? Aquele, de todos, era seu poema predileto.
Cena 2
Carinho dos amigos por Domingos
§ 5
- Quem? Os amigos de Domingos.
- Onde? Reunião com os amigos em uma livraria.
- Quando? Em algum momento do passado.
- O quê? Os amigos concordam com o entusiasmo de Domingos pelo poema.
- Como? Os amigos acolhem o entusiasmo de Domingos por Baudelaire, recitam eles próprios outros poemas de Baudelaire, ou, quando de outros poemas, concedem que Domingos os relembre de que Baudelaire escrevera melhor.
- Por quê? Domingos era muito querido dos amigos.
Cena 3
Personalidade agradável de Domingos
§ 6, 7, 8, 9
- Quem? Domingos.
- Onde? Reunião com os amigos em uma livraria.
- Quando? Em algum momento do passado.
- O quê? Domingos revela aspectos de sua personalidade e história.
- Como? Comporta-se alegremente, mas sem grosserias, mostra-se atento, traduz poemas, contrasta sua erudição com a aridez de uma cidade interiorana, refere seu passado de contabilista em um banco, seu cuidado com a saúde por meio da natação.
- Por quê? Domingos ali vivia, procurava desfrutar a velhice.
Cena 4
Reviravolta: Domingos se ausenta, a doença se instala em Domingos
§ 10, 11, 12
- Quem? Domingos.
- Onde? Reunião com os amigos em uma livraria.
- Quando? Em algum momento do passado.
- O quê? Domingos evita os amigos, finalmente comparece à livraria, mas expressa um discurso desconexo.
- Como? Comparece à livraria, fala uma mistura de assuntos, interpretada como gosto pela privacidade, depois desvendada como sintomas da doença que o consumiria.
- Por quê? Domingos adoentara-se de um mal neurológico.
Cena 5
§ 13, 14, 15
- Quem? Domingos.
- Onde? Reunião com os amigos em uma livraria.
- Quando? Em algum momento do passado, durante a manifestação da doença.
- O quê? Domingos consulta médicos, e aconselhado por eles tenta manter sua rotina de recitais de poesia com os amigos, mas não consegue, os amigos se esforçam para agradá-lo, mas a doença o consome progressivamente, até ele ser retirado do convívio dos amigos pela família dele.
- Por quê? Domingos nutria esperanças, talvez de conselhos médicos, de retardar, quem sabe reverter, o avanço da doença, pela obstinada manutenção de seus hábitos.
Cena 6
§ 16 até o final
- Quem? O narrador, Domingos, a esposa do Domingos.
- Onde? Casa do Domingos.
- Quando? Em algum momento do passado, posteriormente ao ápice da doença diante dos amigos.
- O quê? O narrador realiza sua primeira e única visita a Domingos depois do último comparecimento de Domingos à livraria. A esposa relata o estado lastimável da saúde de Domingos, e este é trazido como prova viva do avanço inexorável da doença.
- Por quê? O narrador demonstra seu carinho pelo amigo doente ao mesmo tempo que constata sua impotência diante da doença, e sua tristeza de ver que o amigo se perdeu para a poesia que ambos amavam.
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