O haxixe, de Théophile Gautier (tradução)
Ontem experimentei haxixe. (Não eu, mas o Gautier, 181 anos atrás!)
Esperei um tempo antes de falar do haxixe e dos seus maravilhosos efeitos porque pretendia estar menos dominado por minha empolgação. Eu conhecia os efeitos do ópio, mas, do haxixe, não sabia nada além do nome. Alguns de meus amigos orientalistas me haviam prometido a oportunidade de experimentá-lo; no entanto, devido à dificuldade de obter essa preciosa pasta, ou ainda outras razões, o projeto era repetidamente protelado... Mas ontem, finalmente, eu experimentei o haxixe; e a demora não estragou em nada a experiência.
Os orientais praticam uma religião que os proíbe de beber vinho, por isso desde séculos eles encontram alternativas com que satisfazer a necessidade de excitação intelectual comum a qualquer pessoa e que nós, ocidentais, resolvemos com orações e bebedeiras.
Na espécie humana, o desejo do ideal é tão forte quanto o esforço por discernir entre a alma e o corpo. Como o êxtase não costuma sair de graça ou nem chega fácil à maioria das pessoas, surgiram o vinho, o tabaco e o haxixe : bebemos alegria, fumamos o esquecimento e comemos o desvario. Que curioso! Basta uma garrafa de bebida, uma baforada de fumaça, ou uma colherada de pasta esverdeada , e a alma se modifica num instante: os sisudos se permitem extravagâcias, os silenciosos falam sem interrupção ; o triste gargalha enquanto o alegre chora.
Mas o que vem a ser o haxixe? Ora, o haxixe é o extrato da flor do cânhamo (Cannabis indica). Cozido com manteiga, pistaches, amêndoas e mel, transforma-se em uma pasta que lembra a compota de damasco e tem um gosto agradável. O Velho da Montanha 1 servia haxixe a seus guerreiros para que executasssem os inimigos . A palavra assassino nasceu daí, de hachaschin, que significa comedor de haxixe.
Meus amigos orientalistas me explicaram que quem não tem o hábito do haxixe deve se contentar com uma única colherada. Disseram que a substância podia ser comida pura ou misturada com café sem açúcar, à moda árabe. Reunidos para o experimento, servimos a mesa como de hábito, comemos nossas doses de haxixe e mantivemos a normalidade de um jantar qualquer, pois o espírito do cânhamo demora para baixar em cena.
Um dos presentes, um médico, experiente viajante do Oriente, vigoroso comedor de haxixe, ingeriu uma porção incomparavelmente superior à quantidade a que eu me dispunha. Ele foi o primeiro a sofrer a possessão: o doutor via estrelas no prato, via o firmamento no fundo da sopeira, falava sozinho voltado para a parede, ria muito ; seus olhos se iluminavam profundamente jubilosos.
Eu, ao fim do jantar, sentia-me calmo, muito embora as pupilas de outro convidado principiassem a cintilar estranhamente, cada vez mais donas de um azul turquesa singular ; as colheres começaram a voar. Aproveitando o que restava de juízo, acomodei-me nas almofadas marroquinas de um sofá e ali esperei o êxtase. Escoaram-se alguns minutos quando um torpor me invadiu: eu sentia meu corpo se dissolver e assumir tal transparência que eu enxergava o haxixe em meu estômago, ele era uma esmeralda que soltava milhões de faíscas. Meus cílios se alongaram infinitamente, enrolaram-se como fios de ouro em teares de marfim e foram girando a uma velocidade ofuscante. As cores ao meu redor fluíam e desabavam como pedrarias; arabescos, desenhos primitivos, flores, árvores , todas essas coisas se renovavam como em um caleidoscópio.
Meus camaradas de haxixe haviam se transformado em plantas humanoides; um deles tinha o ar de uma íbis pensativa que se apoiava em uma única pata; outro era um avestruz e batia as asas. Em meu canto, eu me contorcia de riso, até que finalmente abracei a bufonaria circundante: arremessava minhas almofadas para cima e ostentava a destreza de um malabarista indicano nessa brincadeira. Um dos presentes dirigiu-me um discurso em italiano. O haxixe, na plenitude de sua onipotência, traduziu o discurso para espanhol; conversamos razoavelmente, sobre indiferenças do teatro e da literatura.
Meu primeiro acesso terminou e em instantes eu retomei o sangue frio. Nenhum enjoo, nenhuma tontura: nenhum dos sintomas seguintes à embriaguez alcóolica. Eu lembrava com nitidez tudo o que se passara. Mas, menos de meia hora depois, o haxixe retomava o império sobre mim, dessa vez me conduzindo a visões complexas e superiormente extraordinárias.
Envolveu-me uma atmosfera confusamente iluminada, voltejava-me um perpétuo formigar de bilhões de borboletas que farfalhavam como leques. Flores gigantescas com cálices de cristal, enormes rosas, lírios áureos e argênteos me rodeavam, cresciam e desabrochavam, estrepitando como fogos de artifício.
Minha audição se desenvolveu tão prodigiosamente que eu escutava o som das cores. O verde, o vermelho, o azul, o amarelo: cada um de seus tons emitia acordes que eu distinguia com perfeição. Um copo emborcado, o barulho do estofado de uma poltrona, uma palavra sussurrada, vibravam e retumbavam como as engrenagens do tambor de uma pistola. Eu não ousava falar, pois minha voz era tão poderosa que meu menor murmúrio despedaçaria muralhas. Quinhentos relógios de pêndulos me cantavam as horas com tons suaves de cobre e prata. Os objetos que eu tocava emitiam notas de gaita ou harpa eólia. Logo eu nadava num oceano sonoro de que emergiam ilhotas reluzentes de motivos musicais.
Uma beatitude inigualável inundou-me, misturou-me ao etéreo, abstraiu-me de mim mesmo, desembaraçou-me de meu Eu. Livre dessa odiosa testemunha de todos meus passos, compreendi naquele instante os espíritos elementais, os anjos e as almas penadas. Eu era uma esponja no centro do oceano, invadiam-me ondas de felicidade: entrava e saía por meus poros o líquido da fantasia em que eu me encontrava imerso.
Sons, perfumes, e luz se enrolavam em multidões de tubos da finura dos cabelos, e me inundavam em correntes magnéticas. Eu calculava que já iam trezentos anos desde minha colherada de haxixe: as sensações eram tão numerosas, tão compactas, que um segundo continha a vida de uma década. Mas o acesso passou e eu vi no relório que havia durado quinze minutos.
A embriaguez do haxixe tem essa particularidade: ela é descontínua, pega-o e deixa-o, eleva-o ao céu, desjeja-o na terra , e sem transição nenhuma. Dizem que também a loucura tem seus lampejos de lucidez... Mas veio um terceiro acesso, o último, o bizarro, que encerrou minha noite oriental.
Minha visão se repartiu em duas. Minotauros, quimeras, cocatrices, unicórnios, grifos e dragões, 2 toda a galeria de bestas mitológicas trotava, saltitava, voava e guinchava pelo cômodo. Trompetes expeliam flores, mãos se abriam em nadadeiras; havia seres heteróclitos que tinham pernas de poltronas. Os mostradores de relógio eram olhos que piscavam para mim. Narizes gigantes, sustentados em longas pernas de frangos, dançavam cachucha.3
Eu havia me transformado em um papagaio e espalhava meus alaridos no recinto quando de súbito essas visões barrocas me encheram de vontade de desenhar. Com velocidade inacreditável, em envelopes, versos de bilhetes, folhas avulsas, produzi uma quinzena de croquis de estravagância até então desconhecida no mundo.
Retratei o médico ao piano, vestido de turco e com um sol nas costas do manto. As teclas do piano lançavam indistintamente notas musicais, foguetes e espirais caprichosamente retorcidas.
Retratei uma locomotiva viva com um pescoço de cisne e uma boca de serpente de onde cospia nuvens de fumaça; sentado na cauda desse animal do futuro, Mercúrio, o deus grego da velocidade, massageava os tornozelos alados em reconhecimento da derrota.
Sem qualquer artifício ou imaginação, desenhei um duende, conferindo corpo e rosto a uma criatura de que eu conhecia somente os ruídos tenebrosos que ela emitia em meu velho guarda-roupas.
Enfim...
Basta de folia! Basta!
Para contar por inteiro uma experiência de haxixe, eu precisaria me alongar por alguns parágrafos; paro aqui, trêmulo diante do risco de despertar o apocalipse.
Théophile Gautier foi um poeta e romancista francês do século XIX. Le hachisch, objeto aqui de minha tradução despojada, foi publicado em 1843.
Notas de rodapé
1. Velho da Montanha. O Velho da Montanha foi um proeminente membro da seita dos assassinos a qual entre os séculos XI e XIII propagava uma variante da fé islâmica no Oriente Médio e assassinava autoridades locais. A etimologia de Gautier, associando a denominação da seita com o haxixe, parece ser uma fantasia disseminada por pelo viajante Marco Polo (1254-1324). A denominação da seita mais certamente provém "assass", um termo árabe que se refere aos fundamentos da fé, não havendo nenhuma comprovação de que sequer consumissem haxixe recreativamente, quanto mais para praticar assassinatos. Mas, eram de fato matadores no sentido contemporâneo de matar pessoas, geralmente alvos políticos, e a denominação da seita de alguma forma parece ter influenciado os idiomas latinos (português, espanho, francês...) a empregar o termo "assassino" para identificar quem mata seus semelhantes e o idioma inglês a empregar "assassination" para designar o ato de matar alguém. Por favor, consulte a entrada Order of Assassins, na Wikipedia, para detalhes. Voltar
2. Minotauros, quimeras, cocatrices, unicórnios, grifos e dragões. São seres mitológicos. O minotauro tem cabeça de touro, pernas de touro, e torço humano. As quimeras são leões alados, às vezes com víboras saindo do cangote. As cocatrices são como galinhas misturadas com lagartos, têm asas repitilianas, penas aqui e ali, corpo de réptil, e cabeça de galinha. Os unicórnios são cavalos com um chifre no meio da cabeça, entre os olhos ou um pouco acima deles. Os grifos são águias gigantes com patas ou corpos de leões. Os dragões são répteis alados e gigantes, que cospem fogo. Voltar
3. Cachucha. A cachucha é uma dança espanhola, originada em Cuba, semelhante a um sapateado, ficou popular na França no século XIX. Voltar