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Para acender um fogo, de Jack London (tradução)

Tradução de "To build a fire", de Jack London (1908), por Camilo Prado (2025), todos os direitos reservados, para uso didático (daí os números precedendo cada parágrafo) na "Oficina de Escrita Criativa".

§ 1º. O dia amanhecia frio e cinza, excessivamente frio e cinza, quando o homem se afastava da principal trilha do Rio Yukon e subia um barranco onde outra trilha, estreita e quase apagada, levava ao leste através de uma densa floresta de abetos. O barranco era íngreme, e ele parou para respirar após a escalada, mas fingiu que a pausa servia para consultar seu relógio. Eram nove horas. Não havia sol ou indício de sol, embora não houvesse nuvens no céu. Era um dia claro, mesmo assim parecia que uma cortina intangível recobria tudo e escurecia o dia. Era consequência da ausência do sol. Mas nada disso preocupava o homem. Estava acostumado à ausência do sol. Havia dias que não via o sol, e sabia que mais dias passariam até que aquela orbe alegre, vinda do sul, espiasse sobre o horizonte antes de novamente imergir para fora da visão.

§ 2º. O homem lançou um olhar para trás e avistou o caminho percorrido. Seiscentos metros, cobertos por uma camada de um metro de gelo, separavam as margens do Rio Yukon. Em cima desse gelo, repousava igual espessura de neve, criando uma branquidão que ondulava gentilmente entre as placas de gelo formadas pelo clima glacial. De norte a sul, até onde os olhos alcançavam, o branco imperava contínuo, exceto por uma linha escura que serpenteava ao redor de uma ilha de abetos, contorcia-se na direção norte e perdia-se atrás de outra ilha de abetos. Essa linha escura era a trilha principal, que percorria oitocentos quilômetros ao sul até a passagem pelas montanhas de Chilcoot, a cidade de Dyea, e o mar; e percorria cem quilômetros ao norte até a cidade de Dawson, depois mais mil e seiscentos quilômetros norte até a cidade de Nulato, e finalmente a cidade de St. Michael no Mar de Bering, dois mil e quatrocentos quilômetros à frente.

§ 3º. Mas tudo isso, a misteriosa e longa linha escura, o sol ausente do céu, o frio esmagador, a peculiaridade, a esquisitice disso tudo, nada deixava a menor impressão no homem. Não que ele estivesse acostumado a isso tudo. Era um recém-chegado a essas terras, um chechaquo, e este era seu primeiro inverno. O problema estava em sua falta de imaginação. Mostrava-se ligeiro e alerta com as coisas mundanas da vida, apenas com as coisas, não com os significados das coisas. Quarenta e cinco graus Celsius negativos equivalem a quarenta e cinco graus abaixo do ponto de congelamento da água, que solidifica a zero graus Celsius. Para ele, esse fato significava frio e desconforto, e nada mais. Não se sentia impelido a meditar sobre sua fragilidade de criatura térmica, nem sobre a vulnerabilidade geral do humano, cuja sobrevivência depende de limites de calor e frio. Jamais especularia sobre a hipótese da imortalidade ou o lugar do humano no universo. A temperatura de quarenta e cinco graus negativos era um fato que para ele significava uma mordida gélida contra a qual uma pessoa deveria se proteger com luvas, gorros, botas e meias. Quarenta e cinco graus abaixo de zero tinham para ele o preciso significado de quarenta e cinco graus abaixo de zero. Nunca adentrou em sua cabeça a ideia de que poderia haver um significado além desse.

§ 4º. Decidido a prosseguir, cuspiu para ver o que aconteceria. Um estalo ríspido, explosivo, o assustou. Cuspiu de novo. E pela segunda vez, no ar, antes de tocar a neve, o cuspe estalou. Sabia que o cuspe congelava na neve a quarenta e cinco abaixo de zero, mas o cuspe congelara ainda no ar. Sem dúvida nenhuma estava mais frio, embora ele não soubesse o quanto. Mas a temperatura não importava. Estava decidido a chegar ao acampamento no Rio Henderson, onde os rapazes estavam. Eles haviam vindo pelos caminhos do Rio Indian, enquanto ele havia vindo por uma trilha mais comprida com a esperança de identificar os pontos do leito do Yukon em que as correntezas haviam acumulado árvores caídas antes do inverno. Ambicionava chegar ao acampamento ainda naquele dia às dezoito horas. Sua chegada coincidiria com o anoitecer, é bem verdade, mas os rapazes estariam lá, haveria uma fogueira, e um jantar quente à espera. Lembrando-se do almoço, apertou a mão sobre um embrulho metido em sua jaqueta. Estava sob sua blusa, enrolado em uma toalha rente à pele. Era a única maneira de impedir o congelamento. Sorriu contente consigo mesmo e imaginou aqueles pães recheados de generosas fatias de toucinho frito e empapados de gordura.

§ 5º. Embrenhou-se por entre as árvores de abetos. A trilha estava se apagando. Uma camada de neve havia caído desde a passagem do último trenó, e ele ficou contente por estar sem um trenó, viajando com leveza. De fato, não carregava nada além do almoço embrulhado na toalha. Mas estava surpreso com o frio. Fazia um frio danado, ele conjecturou enquanto esfregava o nariz e as bochechas dormentes com a mão enluvada. Era bigodudo e barbudo, porém os pelos faciais não protegiam as maçãs do rosto ou o nariz pontudo que se intrometia agressivamente no ar glacial.

§ 6º. Um cachorro trotava no encalço do homem. Era um husky nativo, um típico cão-lobo de costas cinzas e barriga branca, cujo temperamento não se apartava visivelmente do seu irmão, o lobo selvagem. O animal se deprimia com frio avassalador. Sabia que não era época de viagens. Seu instinto o alertava disso com a clareza que faltava ao discernimento do homem. Na realidade, não estava apenas mais frio do que quarenta e cinco graus abaixo de zero; estava mais frio do que cinquenta abaixo de zero, do que cinquenta e cinco abaixo de zero. Fazia sessenta graus Celsius abaixo de zero. Uma vez que o ponto de congelamento fica a zero graus, sessenta graus negativos equivalem a sessenta graus abaixo do ponto de congelamento. Um cachorro nada entende de termômetros ou temperaturas. Possivelmente seu cérebro carece de um conceito de frio extremo tal qual disponível ao cérebro humano, mesmo assim o bicho tem instinto. Aquele animal experimentava ali uma vaga todavia ameaçadora apreensão que o subjugava e o fazia seguir furtivamente os passos do homem, assim como o fazia acompanhar com atenção especial todo movimento não usual do homem, como se esperando que o homem se abrigasse e acendesse uma fogueira. O cachorro conhecia o fogo, desejava o fogo, e na falta dele se enterraria na neve e se enrolaria em seu próprio calor enquanto se protegia do vento.

§ 7º. A fria umidade do hálito do cachorro deixava em sua pelagem um fino pó de gelo, e sua mandíbula, seu focinho, suas sobrancelhas se embranqueciam com os cristais formados por sua respiração. A barba e o bigode ruivos do homem também se congelavam, todavia com maior solidez, imitando estalactites que aumentavam a cada quente e úmida baforada. Além disso, o homem mascava tabaco e, devido à focinheira de gelo que se formava em sua boca, o sumo expelido escorria em seu queixo. O resultado era que uma barba cristalizada, com a cor e a solidez do âmbar, crescia em seu queixo. Se ele caísse, ela se quebraria em cacos igual vidro. Mas ele não se importava com esse apêndice. Era um contratempo comum aos mascadores de tabaco nessas paragens, e ele havia vagado por outras duas ondas de frio, embora não tão frias como essa, ele reconhecia, e o termômetro de álcool dos povoados do Riacho de Sixty Mile nessas ocasiões havia registrado entre 45 e 50 graus negativos.

§ 8º. O homem adentrou quilômetros pela floresta, desceu um barranco e alcançou o leito de um rio congelado. Era o Rio Henderson, que, ele sabia, se bifurcava dali a dezesseis quilômetros. Consultou o relógio. Eram dez horas. Vinha caminhando seis quilômetros por hora, então calculou que chegaria à bifurcação do Henderson ao meio dia e meia. Achou uma ótima ideia celebrar essa descoberta e decidiu que almoçaria tão logo alcançasse a bifurcação.

§ 9º. O cachorro, com a cauda baixa em sinal de desânimo, seguia o homem enquanto este avançava pelo leito do rio. O sulco da trilha de trenó estava plenamente visível apesar dos trinta centímetros de neve encobrindo esse rastro dos últimos viajantes. Em um mês ninguém mais se arriscaria perto desse rio silencioso. Mas o homem prosseguia com vigor. Não tinha o habito de pensar, e naquele momento em especial não pensava em nada além do almoço na bifurcação do rio e na sua chegada às dezoito horas ao acampamento dos rapazes. Não havia com quem conversar. Mesmo que houvesse, uma conversa seria impensável por causa da focinheira de gelo grudada em sua boca. Portanto continuou monotonamente a mascar o tabaco e a aumentar o cumprimento de sua barba âmbar.

§ 10. Vez por outra lhe retornava ao pensamento a intensidade do frio, para ele inédita. Esfregava as maçãs do rosto e o nariz com as costas de suas mãos enluvadas enquanto caminhava. Procedia assim maquinalmente, cada vez com uma mão diferente. Esfregasse o quanto quisesse, no instante em que parava, as maçãs de seu rosto ficavam dormentes, e na sequência a ponta de seu nariz adormecia também. Tinha certeza de que suas bochechas congelavam; então experimentava uma pontada de arrependimento por não haver providenciado uma proteção facial no estilo daquelas usadas nas nevascas. Uma proteção que cobrisse as bochechas e as salvasse do frio. Mas isso não tinha grande importância. Que é que tinha se as bochechas congelavam? Seria um pouco dolorido, nada além disso, nada sério.

§ 11. Em contraste com sua mente vazia de pensamentos, sua observação era arguta e ele notava o serpentear do rio, as curvas e os amontoados de galhos, e dedicava total atenção a cada um de seus passos. De repente, em uma curva do trilha, parou abruptamente, parecendo um cavalo assustado, e recuou diversos passos. Sabia que o rio havia congelado até o fundo, nenhum rio mantinha água corrente no inverno ártico, mas também sabia que havia correntezas descendo das colinas por debaixo da neve e por cima da superfície congelada dos rios. Sabia que as ondas de frio nunca congelavam essas correntezas, e sabia que eram perigosas. Eram armadilhas. Escondiam poços de água congelante que variavam de dez centímetros a um metro de profundidade. Às vezes uma película de gelo, não mais do que meio centímetro, tampava um desses poços, e a neve se acumulava por cima. Outras vezes camadas de água e gelo fino se alternavam: quem caía por elas quebrava a primeira camada, depois seguia quebrando as demais camadas, e se ensopava até o peito de água mortalmente gelada.

§ 12. Por isso havia recuado com tanto pânico. Seus pés haviam sentido a superfície de gelo fino e seus ouvidos haviam captado o estalo daquela película de gelo escondida sob a neve. E ter seus pés congelados em uma temperatura tão baixa significava uma mistura de problema e perigo. No mínimo provocaria atraso, pois se veria forçado a parar e acender uma fogueira, e descalçar botas e meias para secá-las ao fogo. Ereto, estudou o leito do rio e suas margens, e concluiu que a correnteza vinha da direita. Pensou por um tempo, esfregou o nariz e as bochechas, então virou à esquerda, pisando temerosamente, experimentando cada pisada. Assim que se sentiu livre do perigo, serviu-se de uma bocada de tabaco novo, e retomou seu ritmo de seis quilômetros por hora.

§ 13. Enfrentou diversas dessas armadilhas nas próximas duas horas de caminhada. Geralmente eram denunciadas por leves e lisas depressões na neve. Uma vez quase caiu em uma delas, mas, suspeitando do perigo, compeliu o cachorro a ir na frente. O cachorro não queria ir, então resistiu até que o homem o empurrou em diante. O cachorro corria pela superfície branca e uniforme quando um ponto dela se partiu de repente, e o animal afundou parcialmente na água antes de escapar para um lugar firme. Havia molhado as patas e as pernas, e quase imediatamente a água se congelou. Foi preciso um esforço veloz e intenso para retirar o gelo das pernas com lambidas e se deitar na neve para retirar com os dentes os pedaços de gelo incrustados nas patas. Procedia por instinto. Se deixasse o gelo ali, suas patas inchariam, mas ele não sabia disso. Sabia apenas que devia obedecer a um comando misterioso que nascia de suas profundezas. Entretanto o homem sabia disso, pois alguém lhe havia dito, então retirou as luvas e ajudou o animal a se livrar do gelo. Embora seus dedos não tivessem ficado expostos por mais de um minuto, adormeceram levemente, e isso deixou o homem espantado. Calçou a luva com pressa e pressionou a mão contra o peito com certa selvageria.

§ 14. Ao meio dia, a claridade estava máxima. Apesar disso, o sol se encontrava longe demais em seu recesso invernal para que pudesse limpar o horizonte. As colinas se interpunham entre o sol e o Rio Henderson, onde o homem caminhava sob o sol do meio dia sem fazer nenhuma sombra. Exatamente ao meio dia e meia, chegou à bifurcação do Henderson. Ficou satisfeito com a velocidade com que avançou. Se a mantivesse, certamente estaria com os rapazes às dezoito horas. Desabotoou a jaqueta e a blusa e retirou o almoço. Não demorou mais do que quinze segundos para isso, e esse breve instante foi suficiente para que a dormência afetasse seus dedos. Dessa vez não calçou as luvas; ao invés disso, bateu os dedos uma dúzia de vezes contra as pernas. Então se sentou em um tronco coberto de neve para comer. O estímulo advindo do choque dos dedos contra as pernas arrefeceu tão rapidamente que ele ficou inquieto. Mal tivera tempo de dar uma mordida no pão com toucinho. Voltou a bater os dedos repetidamente e enfiou-os de volta na luva; tirou a luva da outra mão para comer com ela. Tentou dar uma mordida, mas a focinheira de gelo não deixava. Havia esquecido de acender uma fogueira com que derretê-la. Riu de sua tolice, e quando riu, percebeu que a dormência se insinuava em seus dedos descobertos. Percebeu também que faltava qualquer sensação aos dedos dos pés. Ficou em dúvida se os dedos dos pés estavam quentes ou dormentes. Movendo-os nas botas, concluiu que estavam dormentes.

§ 15. Calçou a luva apressado e ficou de pé. Estava levemente assustado. Marchou sem sair do lugar até que o calor voltasse aos pés. Isso sim que era frio, pensou. Aquele veterano do vilarejo do Rio Sulphur dizia a verdade quando descrevia o frio que não raro assolava essas paragens. E o homem havia achado graça! Agora aprendia que não se podia ter certeza absoluta das coisas. Sem dúvida fazia frio. Caminhou apenas para se movimentar, batendo os pés e sacolejando os braços, e fez isso até estar seguro de que o calor retomava seu corpo. Finalmente, retirou alguns fósforos e fez uma fogueira. Retirou a lenha daquela camada inferior do gelo na qual durante a primavera e o verão as correntezas acumulavam galhos. Trabalhando meticulosamente, em breve transformou uma pequena porção de gravetos em um fogo poderoso, que derreteu o gelo de sua face e que o protegeu enquanto comia os pães com toucinho. Naquele instante foi como se o frio tivesse desaparecido. O cachorro esquentou-se satisfeito à fogueira, deitou-se perto o suficiente para absorver o máximo de calor sem ser sapecado.

§ 16. Quando terminou de se alimentar, o homem encheu o cachimbo e se reconfortou com umas baforadas. Depois calçou as luvas, ajustou o gorro para cobrir as orelhas, e retomou a trilha que beirava a bifurcação esquerda do rio. O cachorro estava desapontado e desejava permanecer perto do fogo. Esse homem desconhecia o frio. Provavelmente seus ancestrais também desconheciam o frio, o frio de verdade, o frio de sessenta graus abaixo do ponto de congelamento. Mas o cachorro sabia bem o que era o frio; seus ancestrais sabiam o que era o frio, e ele herdara esse conhecimento. Era uma péssima ideia caminhar ao ar livre em um frio tão medonho. Era hora de se aconchegar em um buraco na neve e esperar que uma cortina de nuvens se estendesse no céu e bloqueasse a origem desse frio. Contudo, não havia conexão entre o cachorro e o homem. O cachorro servia de escravo, de ferramenta, do homem, e conhecia do homem somente a carícia proporcionada pelo chicote e os ameaçadores sons guturais que prenunciavam uma chicotada. Em consequência, o cachorro não se esforçava minimamente para comunicar sua apreensão ao homem. Não lhe importava o bem estar do homem; era por interesse próprio que o cachorro se atrasava ao redor do fogo. Mas o homem assoviou, e emitiu um daqueles sons guturais do chicote, e o cachorro virou-se na direção do homem e o seguiu de longe.

§ 17. O homem encheu a boca de tabaco e iniciou a produção de uma nova barba âmbar. Seu hálito úmido empoeirava de branco o bigode, as sobrancelhas e os cílios. Não parecia haver correntezas escondidas nessa trilha à esquerda do Rio Henderson, e por meia hora o homem não viu sinais de nenhuma. E então aconteceu. Em um local insuspeito, onde a macia e contínua neve nada advertia acerca da solidez do assoalho sobre o qual se estendia, o homem afundou, porém não muito, apenas até a metade dos joelhos antes que pulasse para um lugar seguro.

§ 18. Foi tomado pela raiva e amaldiçoou aos gritos sua má sorte. Esperava chegar ao acampamento dos rapazes às dezoito horas e esse acidente o atrasaria em uma hora, pois ele precisava acender uma fogueira e secar os pés e as botas. Fazer isso era imperativo em uma temperatura tão baixa, ele bem o sabia. Voltou-se para um barranco e subiu por ele, encontrando no topo, emaranhado nos troncos dos abetos, um punhado de lenha seca, principalmente gravetos, mas também galhos e gramíneas ressecados desde o ano anterior. Usou os galhos para forrar a neve do chão, assim prevenindo que as chamas se afogassem na água da neve que viriam a derreter. Acendeu um fósforo raspando-o contra uma casca de bétula que tirou do bolso e produziu uma chama. O fogo queimava mais forte do que se acendido em papel. Respeitando a base da fogueira, ele a alimentou com punhadinhos de grama ressecada e com os mais finos gravetos.

§ 19. Trabalhava com lentidão e cuidado, completamente alerta ao perigo que corria. Gradualmente, a chama cresceu forte, e ele aumentou o tamanho dos gravetos com que a alimentava. Apalpava a neve, arrancava os gravetos e os depositava diretamente na chama. Sabia que não podia haver erro, afinal seus pés estavam encharcados. Se seus pés estivessem secos, diante de uma falha ele poderia correr meia milha ao longo da trilha até restaurar a circulação sanguínea. Mas, a sessenta graus negativos, nenhuma corrida restauraria a circulação a um pé encharcado. Não importaria a velocidade da corrida, os pés congelariam fatalmente.

§ 20. Tudo isso era de seu conhecimento. O veterano do vilarejo do Rio Sulphur havia lhe ensinado tudo isso no último outono, e só agora ele valorizava o conselho. Toda sensação se havia esvaído de seus pés. Para acender a fogueira, havia precisado retirar as luvas, e os dedos rapidamente ficaram dormentes. Seu ritmo de seis quilômetros por hora havia conservado seu coração bombeando sangue para a superfície do corpo e suas extremidades. No instante em que ele parou, o bombeamento perdeu impulso. O frio golpeara aquela região desprotegida do planeta Terra, e ele, estando naquela região desprotegida, recebera por completo a força do golpe. O sangue de seu corpo se recolhia diante do frio. O sangue estava vivo, tal qual o cachorro estava vivo, e tal qual o cachorro, queria fugir e se esconder do frio amedrontador. Desde que caminhasse a seis quilômetros por hora, o coração, mesmo que contrariado, bombearia aquele sangue para a superfície do corpo; mas agora o sangue se recolhia ao interior do corpo. E as extremidades eram as primeiras partes do corpo a sentir a ausência do sangue. Os pés congelavam ainda mais rapidamente, os dedos expostos ficavam ainda mais dormentes, e em breve principiaram a congelar. O nariz e as bochechas já congelavam e sua pele se arrepiava com a falta do sangue.

§ 21. Mas ele estava a salvo. Dedos, nariz e bochechas seriam somente tocados pelo gelo, pois o fogo tomava força. Galhos do tamanho de um dedo o alimentavam agora. Em um minuto, as chamas engoliriam galhos do tamanho de um braço. Quando isso acontecesse, o homem retiraria as botas e, enquanto elas secassem, ele esticaria os pés nus perto do fogo, massageando-os de início, claro, com neve. A fogueira se revelava um sucesso. Ele estava a salvo. Recordou de um dos conselhos do veterano de Sulphur e riu. O veterano havia anunciado com severidade a lei: ninguém deveria viajar sozinho pelo região do Yukon quando o termômetro marcava cinquenta graus negativos ou menos. Pois bem, e aqui ele estava; tivera um acidente; estava sozinho; e se salvava. Os veteranos eram uns afeminados, ou pelo menos alguns eram, ele ponderou. Tudo o que um homem deveria fazer era manter o juízo e ele se daria bem. Qualquer homem que fosse homem poderia viajar sozinho. Mesmo assim era surpreendente a velocidade com que suas bochechas e seu nariz congelavam. E ele temia que seus dedos ficassem sem vida em instantes. Mas sem vida já estavam, pois mal podia juntá-los para pinçar um graveto; seus dedos pareciam separados de seu corpo e dele como um todo. Quando tocava um graveto, precisava constatar com os olhos se o segurava ou não. Os nervos mal comunicavam suas ordens às pontas dos dedos.

§ 22. Para dizer a verdade, ele julgava que nada disso tinha grande importância. O fogo ali estava, revolvendo-se e crepitando. A dança da chama prometia vida. Começou a desamarrar as botas. O gelo as recobria; suas grossas meias alemãs assemelhavam placas de ferro subindo até os joelhos; e os cadarços assemelhavam cabos de aço retorcidos e amarrados numa conflagração. Por um tempo ele lutou com seus dedos dormentes; percebendo a tolice, desembainhou a faca.

§ 23. Mas antes que pudesse cortar os cadarços, aconteceu a desgraça. Por culpa dele, por erro dele. Não deveria ter acendido a fogueira debaixo de um abeto. Deveria tê-la acendido ao ar livre. Mas era mais fácil pegar os gravetos emaranhados na árvore e colocá-los diretamente no fogo. Todavia a árvore sob a qual ele se posicionara tinha uma carga de gelo em sua copa. Nenhum vento havia soprado por semanas, e a copa se carregara ao máximo. Cada vez que ele depositava um graveto nas chamas, uma pequena agitação atingia a árvore, uma agitação imperceptível para ele, mas uma agitação suficiente para precipitar o desastre. Os galhos superiores deslizaram sua carga aos inferiores, que, sobrecarregados, cediam em um processo contínuo que se espalhava e envolvia toda a árvore, e isso formou uma avalanche que despencou sem aviso sobre o homem e sua fogueira. Agora o fogo estava extinto. Onde a pequena fogueira queimava, havia agora um manto de neve fresca e desordenada.

§ 24. O homem entrou em choque. Era como se acabasse de ouvir sua sentença de morte. Por um momento, sentou-se e encarou o lugar da fogueira. Então se acalmou. Talvez o veterano de Sulphur estivesse correto. Se tivesse um companheiro de viagem, estaria livre de perigo agora. O companheiro de viagem poderia ter preparado a fogueira. Pois bem, restava-lhe preparar sozinho uma nova fogueira, e dessa vez não poderia falhar. Mesmo que desse certo, ele quase certamente perderia alguns dedos congelados. Seus pés deveriam estar terrivelmente congelados a essa altura, e ainda demoraria até a segunda fogueira ficar pronta.

§ 25. Esses eram seus pensamentos, embora ele não os pensasse sentado. Ocupava-se enquanto atravessavam sua mente. Preparou a base para uma nova fogueira, dessa vez a céu aberto, onde nenhuma árvore traiçoeira poderia pôr tudo a perder. Depois coletou gravetos e gramíneas que haviam se acumulado no que um dia fora uma curva de rio. Não conseguiu juntar os dedos para apanhar esse material, mas conseguiu juntá-lo aos punhados, por isso indesejáveis gravetos podres e grama molhada vinham junto. Era o melhor que podia fazer. Trabalhando devagar, coletou também um tanto de galhos que no momento certo confeririam força às chamas. Enquanto isso, o cachorro, sentado, observava o homem. Certo ar de despeito pairava em seus olhos caninos, porque compreendia o homem como um provedor de fogo, e o fogo demorava para surgir.

§ 26. Uma vez tudo preparado, procurou no bolso mais uma casca de bétula. Sabia que a casca ali se encontrava, e, embora não a sentisse com os dedos, escutava um som característico quando esbarrava nela durante a procura. Por mais que tentasse, não conseguia segurá-la. E o tempo todo atormentava-o a consciência de que continuava congelando. Esse pensamento recorrente empurrou-o ao pânico, que ele combateu, e sobreveio a calma. Retirou as luvas com os dentes, sacolejou os braços para frente e para trás, bateu as mãos com força nas laterais do corpo. Fez isso sentado, fez isso de pé; e enquanto isso o cachorro se acomodava na neve, sua farta cauda de lobo enrolada ao seu redor aquecia as patas, suas agudas orelhas de lobo eretas enquanto observava o homem. E ao homem, que batia e sacudia os braços e as mãos, acorreu uma inveja intensa daquela criatura quente e segura por obra exclusiva de seus dons naturais.

§ 27. Demorou para o tato retornar a seus dedos maltratados. Os leves beliscões que sentiu, transformaram-se em uma dor excruciante, não obstante saudada com satisfação. Retirou a luva da mão direita e agarrou a casca de bétula. Expostos, os dedos retornavam rápido à dormência. Então pegou um maço de fósforos de enxofre. O frio avassalador já havia levado embora a vivacidade de seus dedos. Durante o esforço para separar os fósforos entre si, o maço inteiro caiu na neve. Tentou apanhar um fósforo da neve, mas não conseguiu. Os dedos mortos não tocavam nem agarravam. Ele se concentrou. Expulsou os pensamentos acerca do congelamento progressivo dos pés, do nariz, das bochechas... e devotou toda a alma aos fósforos. Observando, empregando o sentido da visão onde lhe falhara o sentido do tato, posicionou os dedos nas laterais do maço de fósforos, e fechou os dedos, quer dizer, quis fechar os dedos, porque seus nervos estavam rígidos e os dedos não mexiam. Calçou a luva na mão direita, e sôfrego bateu com ela contra o joelho. Com as duas luvas enluvadas, trouxe o maço de fósforos da neve até o colo. Sua situação continuava igual.

§ 28. A custa de uma série de movimentos, posicionou o maço de fósforos entre os punhos e chegou-o perto da boca. O gelo estralou e se estilhaçou quando ele abriu a boca com violência. Retraindo a mandíbula e afastando o lábio de cima, buscou separar os fósforos com os dentes superiores. Obteve finalmente um fósforo, que depositou no colo. Sua situação continuava igual. Não conseguia segurar o fósforo. Então teve uma ideia. Prendeu o fósforo entre os dentes e o raspou nas pernas. Por vinte vezes raspou o fósforo, até que acendeu. Carregou o fósforo flamejante entre os dentes na direção da casca de bétula. A fumaça, sulfúrica e quente, entrou por suas narinas e alcançou o pulmão. Teve um acesso de tosse. O fósforo caiu na neve e se apagou.

§ 29. Aquele veterano de Sulphur estava coberto de razão, pensou o homem no momento de controlado desespero que se seguiu. Abaixo de quarenta e cinco graus negativos, deve-se viajar acompanhado. Bateu as mãos, mas nenhuma sensação se despertou nelas. Repentinamente arrancou as luvas com os dentes. Apanhou o maço de fósforos entre os punhos. Os músculos quentes dos braços permitiam uma pegada segura. Então raspou o maço de fósforos contra a perna. O maço acendeu por inteiro, setenta fósforos de enxofre acesos todos de uma vez só! Não havia vento para apagá-los. Desviando a cabeça para a lateral para escapar da fumaça sufocante, chegou as chamas à casca de bétula. Segurando os fósforos, tornou-se nítida a sensação em sua mão. Sua carne queimava. Ele sentia o cheiro. A dor atravessava seu âmago. E crescia. Era uma dor aguda. Ainda assim ele a suportava. Segurava os fósforos acesos desajeitadamente perto da casca, que não acendia facilmente pois suas mãos, intrometendo-se no caminho, absorviam a maioria das chamas e queimavam em lugar da bétula.

§ 30. Enfim, não suportou mais e afrouxou as mãos. Os fósforos caíram na neve e chiaram se apagando, mas no processo a casca de bétula pegou fogo. Ele começou por depositar grama seca e gravetos finos na chama nascente. Não conseguia ser seletivo, pois precisava prender o material entre os punhos. Pequenos pedaços de madeira podre e grama úmida misturavam-se ao combustível, embora ele lutasse para se livrar desses intrusos, tirando-os com os dentes. Cuidou do fogo com um carinho desajeitado. O fogo era vida, não podia perecer. A falta de sangue na superfície do corpo despertou tremores que o deixavam mais desajeitado ainda. Enfim uma larga porção de grama úmida caiu e recobriu aquele fogo que começava a engatinhar. Tentou tirar essa grama dali, mas os tremores fizeram com que a empurrasse para longe demais e estraçalhasse o núcleo daquele pequeno fogo. A grama seca e os gravetos finos se espalharam. Tentou agrupá-los de volta. Apesar da seriedade do esforço, os tremores se intrometeram, e a grama seca e os gravetos finos se espalharam de uma vez por toda. Cada grama seca, cada graveto fino, soltaram uma fumaça derradeira antes de se apagar. O provedor do fogo fracassou. O homem observava apático ao redor, e seus olhos pousaram no cachorro, que se sentava na neve, do outro lado da malograda fogueira, e se movia com inquietação, ora levantando uma pata, ora levantando outra pata, distribuindo o peso entre elas em uma ansiedade melancólica.

§ 31. Olhando o cachorro, uma ideia doida invadiu a cabeça do homem. Lembrou-se da lenda de um viajante que, surpreendido por uma nevasca, matou um bezerro e se abrigou dentro da carcaça, salvando-se por esse meio. Mataria o cachorro e enterraria as mãos nas entranhas quentes até livrar-se da dormência, e assim conquistaria condições de preparar uma nova fogueira. Dirigiu-se ao cachorro, chamou-o, porém sua voz carregava um inusitado tom de medo e isso perturbou o animal, que desconhecia esse modo de falar do homem. Havia um problema, e a natureza precavida do cachorro pressentiu perigo, um perigo desconhecido, é bem verdade, mas de algum modo o cérebro canino suspeitou do homem. O cachorro abaixou as orelhas ao som da voz do homem, e os movimentos inquietos de suas patas se acentuaram; ele não avançava na direção do homem. Este colocou-se sobre as mãos e os joelhos, e quis engatinhar até o cachorro. Essa postura incomum exacerbou a suspeita do cachorro, que afastou-se ligeiro.

§ 32. Sentado na neve, o homem lutou por um momento até recuperar a calma, calçou as luvas com ajuda dos dentes e ficou de pé. Deu uma olhada para baixo para se assegurar de que estava realmente de pé, pois o torpor generalizado de seus pés trazia-lhe a sensação de levitar. A posição ereta começou a desfazer a nuvem de suspeita recém originada na mente do animal. A voz do homem ressurgiu como de hábito, aquele som que precedia a chicotada, e o cachorro cedeu à costumeira obediência e se aproximou. Quando ficou ao alcance do homem, este se descontrolou. Atirou os braços na direção do cachorro, e, para sua genuína surpresa, descobriu que suas mãos haviam perdido a capacidade de agarrar, seus dedos não se mexiam nem tinham qualquer sensibilidade. Por um instante havia se esquecido de que os dedos estavam congelados e que seu corpo se congelava um pouco mais a cada instante. Mas tudo aconteceu depressa: antes que o animal escapasse, o homem o envolveu com seus braços, e ficou lá, sentado na neve, retendo o cachorro, que rosnava, gania e lutava.

§ 33. O homem nada podia além de reter o cachorro em seus braços e permanecer ali sentado. Não havia como matar o cachorro. Era impossível. Com aquelas mãos imprestáveis, não podia desembainhar ou segurar a faca, não podia sequer esganar o animal. Soltou o cachorro, que correu imediatamente para longe, com o rabo entre as pernas, rosnando, e finalmente parou a dez metros e examinou o homem com curiosidade, as orelhas pontudas voltadas na direção dele. O homem olhava a procura das mãos e as encontrou penduradas no final dos braços. Ficou desconcertado ao perceber que precisava recorrer aos olhos para localizar as mãos. Decidiu balançar os braços, batendo as mãos enluvadas contra as laterais do corpo. Fez assim violentamente por cinco minutos, e seu coração bombeou à superfície o pouco de sangue necessário para interromper os tremores. Contudo, nenhuma sensação retornava às mãos. Teve a impressão de que elas se penduravam como pesos mortos na extremidade dos braços, e, quando tentava se livrar dessa impressão, elas não davam sinal de vida.

§ 34. Opressivo e entorpecente, veio o medo da morte. Esse medo velozmente o apunhalou quando entendeu que não se tratava mais do medo de ter amputados os dedos congelados das mãos e dos pés, ou de perder as mãos e os pés. Agora se tratava de uma questão de vida ou morte e todas as chances estavam contra ele. O pânico tomou conta dele. Ele se virou e começou a correr ao longo do leito do rio, seguindo aquela antiga e quase apagada trilha. O cachorro juntou-se a ele, embora mantendo distância, e o seguiu. O homem corria por correr, sem intenção definida, tomado de um medo que nunca experimentara na vida. Devagar, conforme ele afundava e se debatia na neve, a visão das coisas retornou: as beiradas do rio, os empilhamentos de madeira, os álamos desfolhados, o céu. A corrida lhe fez bem. Não tremia. Talvez, se ele corresse e corresse, seus pés se aqueceriam; além disso, se ele corresse o suficiente, ele chegaria ao acampamento onde estavam os rapazes. Com certeza perderia alguns dedos das mãos e dos pés, alguns do pedaços do rosto, mas os rapazes cuidariam dele e salvariam o que restasse dele quando ele chegasse ao acampamento. Ao mesmo tempo, outro pensamento avisava-o que ele jamais chegaria ao acampamento onde estavam os rapazes. O acampamento ficava a quilômetros de distância e o corpo do homem se encontrava tão congelado que em breve estaria rígido e morto. Lutava para manter esse pensamento em segundo plano, recusava-se a considerá-lo, mesmo assim ele pulava para o primeiro plano e exigia uma audiência, então o homem o empurrava para seu lugar original e buscava se distrair.

§ 35. Achou curioso conseguir correr com os pés congelados, sem sentir que tocavam o chão ou suportavam o peso do corpo. Era como se deslizasse na superfície de neve sem encostar nela. Recordou-se de ter visto em algum lugar a figura de um deus Mercúrio com asas, e se perguntou se Mercúrio teria essa sensação ao atravessar longas distâncias em segundos.

§ 36. Seu plano de correr até o acampamento dos rapazes padecia de um defeito: o homem não tinha a resistência necessária. Tropeçou várias vezes, finalmente cambaleou, curvou-se e caiu. Tentou se erguer mas fracassou. Precisava sentar e descansar, pensou, e da próxima vez se contentaria em caminhar continuamente. Ali sentado, recuperou o fôlego, e notou que se sentia quente e confortável. Não mais tremia e um calor prazeroso se instalara em seu peito. Ainda assim, quando tocava o nariz e as bochechas, não havia sensação alguma. Correr não descongelaria essas partes do corpo, assim como não descongelaria as mãos e os pés. Constatou que o congelamento de seu corpo só fazia aumentar. Tentou desviar-se dessa ideia, tentou esquecê-la, tentou pensar em outra coisa, pois reconhecia o sentimento de pânico que essa ideia causava, e temia o pânico. Entretanto a ideia crescia em sua mente, e tomou volume até gerar a imagem de seu corpo totalmente congelado. Era demais! Então ele novamente correu enlouquecido pela trilha, até que diminuiu o ritmo e passou a caminhar. Mas a ideia do gelo tomando conta de seu corpo colocou-o para correr mais uma vez.

§ 37. O tempo todo o cachorro seguia em seu encalço. Quando o homem caiu pela segunda vez, o cachorro pousou o rabo sobre as patas dianteiras e sentou-se à sua frente, encarando-o com curiosidade, ansiedade e muita atenção. O calor e a segurança do animal enfureceram o homem, que rogou pragas e maldições até o cachorro abaixar suas orelhas em sinal de obediência. Dessa vez os tremores retornaram mais rápido. O homem perdia a batalha contra o inverno. O frio tomava seu corpo por todos os lados. A consciência desse fato o estimulou a correr e ele correu, mas correu não mais do que seiscentos metros, quando cambaleou e caiu de cara no chão. Foi seu último acesso de pânico. Ao recuperar o fôlego e o controle, sentou-se e entreteve a ideia de uma morte digna, entretanto essa ideia não lhe aconteceu nesses termos. Sua ideia era de que ele se comportava como um tolo, corria como uma galinha decapitada. Essa era a imagem projetada em sua mente. Pois bem, estava condenado a congelar, então que congelasse com dignidade. Essa descoberta lhe induziu certa paz de espírito, que veio acompanhada dos primeiros sinais de sonolência. Uma boa ideia, ele pensou, dormir até a morte. Era como tomar anestesia. Congelar nem era assim tão ruim quanto as pessoas pensam. Havia milhões de mortes piores.

§ 38. Imaginou que os rapazes o encontravam no dia seguinte. Repentinamente, enxergou-se com eles, vindo pela trilha à procura de si mesmo. E, ainda com eles, fez uma curva na trilha e se viu estirado na neve. Ele estava fora de seu corpo, pairando ao lado dos rapazes e olhando-se na neve. Isso sim que era frio, ele pensou. Quando voltasse aos Estados Unidos, contaria às pessoas o que era o frio de verdade. Sua mente deslizou disso para uma visão do veterano de Sulphur. Ele via o veterano com clareza, aquecido e confortável, fumando um cachimbo.

§ 39. "O senhor, seu macaco velho, o senhor estava coberto de razão, coberto de razão", o homem imaginou-se dizer ao veterano.

§ 40. O homem afundou no sono mais confortável e satisfatório de toda sua existência. O cachorro o encarava e esperava sentado. O dia terminava em um longo e lento crepúsculo. Mas não havia sinais de uma fogueira, e, para piorar, nunca que o cachorro testemunhara um homem deitar-se daquela maneira na neve sem acender um fogo. Conforme o crepúsculo se aprofundava, seu desejo por um fogo tomava proeminência. Avançando as patas dianteiras e erguendo a cara, o cachorro ganiu suavemente, depois abaixou as orelhas na expectativa de ser repreendido pelo homem. Mas o homem permaneceu silente. O cachorro ganiu alto. Depois rastejou até perto do homem e farejou a morte, o que o fez recuar, arrepiado. Esperou mais um pouco, uivando sob as estrelas que saltitavam, dançavam e iluminavam brilhosas o céu glacial. Virou-se e retomou a trilha na direção do acampamento, que, ele sabia, era onde estavam outros provedores de comida, outros provedores de fogo.