Estudo narrativo de "Para acender um fogo", de Jack London
Jack London é um dos maiores prosadores norte-americanos. Publicou o conto To build a fire em 1908, sobre um homem que se arrisca em uma viagem por uma floresta glacial, acompanhado de um cachorro.
Seu título costuma ser traduzido para português como Acender uma fogueira, Acendendo uma fogueira e, esta foi minha opção tradutória, Para acender um fogo.
Nesta postagem, realizo um estudo narrativo do conto de Jack London.
Para aproveitar ao máximo este estudo narrativo, recomendo que antes você conheça o conto de Jack London e as ferramentas de composição literárias usadas em sua análise.
Para ler o conto, aproveite as alternativas a seguir:
- Para acender um fogo, de Jack London, traduzido por mim.
- To build a fire, de Jack London: texto original em inglês ou áudio-livro em inglês.
Aprenda sobre as ferramentas de composição literária nesta outra postagem e na oficina de escrita criativa.
Último aviso: Estão expostos no estudo narrativo que se segue, todos os detalhes e o final da história narrada por London em Para acender um fogo.
Premissa
Reviravolta: o viajante cai na água gelada.
Desenvolvimento: as tentativas de acender o fogo para se reaquecer.
- Neve da árvore apaga a fogueira.
- Fósforos caem na neve.
- Cachorro escapa da tentativa de assassinato.
Resolução: o viajante morre de frio.
Personagens
O Homem
- Tipo: protagonista.
- Objetivo e Motivação: reunir-se a seus companheiros de viagens no acampamento do Rio Henderson. Parece remanecer nele uma motivação de provar que sabe mais do que o veterano de Sulphur, de que é melhor viajante do que os nativos, de que tem domínio sobre os elementos naturais.
- Obstáculo: o frio glacial da região do Rio Yukon e sua inexperiência, agravada esta última por sua arrogância.
- Descrição: Um homem cuja arrogância o conduz à destruição. Um homem bigodudo e barbudo, mascador de fumo, um lenhador viajante (se desgarrara do grupo de viagens para procurar depósitos de lenha no curso do rio), recém-chegado dos Estados Unidos à região canadense do Rio Yukon, enfrentando seu primeiro inverno e, em sua arrogância, desprezando os conselhos dos mais velhos (o veterano de Sulphur) e a amizade dos animais (tratava o cachorro como um escravo e não tinha empatia com que entendê-lo). Um homem prático, desprovido de imaginação.
O inverno
- Tipo: antagonista.
- Objetivo e Motivação: nenhum, o inverno apenas existe como o mundo existe.
- Obstáculo: nenhum.
- Descrição: Um clima glacial. Representa a natureza de um mundo que não foi criado em benefício do humano e que é indiferente com relação ao humano. Um inverno glacial de sessenta graus negativos, que congela os rios por inteiro e recobre a paisagem de neve.
O Cachorro
- Tipo: coadjuvante neutro.
- Objetivo: sobreviver ao frio glacial.
- Obstáculo: seu "senhor" (o Homem) é um viajante inapto.
- Descrição: Um cão da raça husky, útil em viagens polares. Represetna a voz da experiência animal, transmitida pelo sangue, pelo nascimento, pelo instinto, que não pode ser desobedecida. Nas palavras de London, o cachorro era "... um husky nativo, um típico cão-lobo de costas cinzas e barriga branca, cujo temperamento não se apartava visivelmente do seu irmão, o lobo selvagem."
O Veterano de Sulphur
- Tipo: coadjuvante do protagonista.
- Objetivo: orientar o viajante para que ele sobreviva ao inverno rigoroso.
- Obstáculo: a arrogância do viajante.
- Descrição: Um homem mais velho que vive no vilarejo do Rio Sulphur e alerta o viajante a respeito dos perigos do inverno. Representa a voz da experiência humana, transmitida por conselhos expressados verbalmente, que podem ser seguidos ou não. Não há uma descrição disponível dele, sabe-se apenas que é mais velho do que o viajante, é nativo da região ou vive nela há muito tempo, e mora ou foi encontrado pelo viajante num vilarejo do Rio Sulphur.
Os rapazes
São coadjuvantes neutros.
Não se sabe nada além de que existem, viajavam com o homem até que este se desgarrou para procurar depósitos de lenha no leito do rio, e que se encontram num acampamento às margens do Rio Henderson. O homem pretende encontrá-los ao entardecer do mesmo dia em que começou sua viagem.
Conflito
Há um conflito entre a percepção do homem acerca da natureza e a natureza como ela é. O homem percebe a natureza como um incômodo superável, mas a natureza se revela um obstáculo destrutivo.
O desejo do homem de viajar sozinho na neve e chegar ao acampamento dos amigos sofre a oposição de uma glaciação devastadora. Esse confronto conduz o homem à destruição.
Enredo
Cena 1, §§ 1º ao 9º
- Quem está na cena? O homem, o Cachorro, o Inverno, os Rapazes.
- Onde se passa a cena? Nas trilhas do Rio Yukon e do Rio Anderson, na floresta de abetos.
- Quando ocorre a cena? No mesmo dia em que o homem partiu em viagem, durante o mais rigoroso dos invernos.
- O que a cena mostra? O homem, acompanhado apenas de um cachorro e levando consigo somente o almoço, partira para se reunir a seus companheiros que estavam em um acampamento a cerca de oito horas de viagem.
- Para que existe a cena, qual sua função na narrativa? A cena apresenta os principais personagens, suas motivações e suas relações. Conhecemos o homem, a estreiteza de seu intelecto, sua praticidade, sua arrogância, seu objetivo; o cachorro, que acompanha contrariado o homem, de quem espera uma fogueira; o acampamento dos rapazes, aonde o homem pretende ir (objetivo); e o inverno esmagador.
Cena 2, §§ 10 ao 16
- Quem está na cena? O Homem, o Cachorro, o Inverno.
- Onde se passa a cena? Na trilha do Rio Henderson.
- Quando ocorre a cena? Ainda no dia do início da viagem.
- O que a cena mostra? O homem se aprofunda na viagem pela trilha do Rio Henderson e decide almoçar em sua bifurcação. Escapa de armadilhas no gelo, em uma delas empregando o cachorro como "boi de piranha".
- Para que existe a cena, qual sua função na narrativa? Revela que o homem dispõe de certa perícia em evitar as armadilhas do gelo, mas também revela que é desatento (tenta almoçar sem antes acender uma fogueira). Explicita a relação instrumental e transacional entre o cachorro e o homem (§ 16). A cena mostra os perigos da viagem. Elas preparam o cenário para a reviravolta e o desenvolvimento.
Cena 3, §§ 17 ao 33
- Quem está na cena? O Homem, o Cachorro, o Veterano do Rio Sulphur, o Inverno.
- Onde se passa a cena? Na trilha do Rio Henderson.
- Quando ocorre a cena? Ainda no dia do início da viagem.
- O que a cena mostra? O homem prossegue viagem após o almoço, escapa de armadilhas até que aciona uma delas e fica com os pés encharcados de água gelada. Ele tenta acender uma fogueira, mas não consegue. Ele tenta assassinar o cachorro, também não consegue.
- Para que existe a cena, qual sua função na narrativa? A cena introduz um novo personagem, o Veterano do Rio Sulphur (§ 20). As cenas mostram a reviravolta da narrativa (o homem caiu num alçapão de água gelada), o desenvolvimento (o homem repetidamente fracassa em acender uma fogueira e não consegue matar o cachorro).
Cena 4, §§ 33 ao 40
- Quem está na cena? O Homem, o Cachorro, o Venterano do Rio Sulphur, os Rapazes, o Inverno.
- Onde se passa a cena? Na trilha do Rio Henderson.
- Quando ocorre a cena? Ainda no dia do início da viagem.
- O que a cena mostra? Após fracassar em se reaquecer, o homem corre em desespero até que faz as pazes com sua situação e decide morrer com dignidade.
- Para que existe a cena, qual sua função na narrativa? A cena apresenta a resolução da narrativa. O homem supera, ao menos em parte, e mesmo que em vão, sua arrogância (ele reconhece a sabedoria do Veterano do Sulphur), e, retomando as rédeas de seu destino, define sua forma de morrer: escolhe morrer dormindo em paz em lugar de morrer enquanto corre desesperadamente. O cachorro, livre do homem, parte em busca de outros homens, que lhe proporcionem comida e abrigo.
Curiosidade
Em comemoração ao centésimo aniversário da morte de Jack London, Fx Goby dirigiu para o Nexus Studios uma adatapção para desenho animado de To build a fire, disponível gratuitamente no canal do estúdio no YouTube.